Terá sido no dia 12 de Julho, data em que meu pai completava
30 dias de pós-vivo, que faleceu a vovó Alfina, vovó Fina como carinhosamente
era tratada nos caminhos errantes da vida. Agora baba e vaga noutras terras,
onde se quer o mundo a pode ver. Tal mundo não é onde me encontro, porque eu, a
vejo como quero e quando quero, eu não sou daqui. Vejo vovó Fina, vovó Olinda,
Garande, Eva, Pire, Sitoi, Muholovi, Maússe entre outros defuntos da minha rua
mortífera.
Vejo-os na matina e ao anoitecer, de dia, devaneamos
entre vivos fingidos de poeiras e outros ventos que os mundanos precisam para
viver. Nós morremos para dar vida aos vivos, assim como os vivos assim o são
para dar vida a nós mortos. Tudo hipocrisias e tolices de um soberano que se
inventa de invisível. Mas esse também o conheço. Sofre com os sons de José
Guimarães, Alexandre Langa, o Kid Munhamane, Tony Django, Matchionguezi no
delírio da escrita de Sebastião Alba, Heliodoro Batista e Amin Nordine, todos
artistas que também me fazem sofrer. Ah! Quem sou eu sem esses moribundos?
E consumada que ficou a morte da vovó Fina naquela
quinta-feira friorenta de Julho, outros ventos sopram entre os vivos e porque o
seu enterro foi de dia, escapuli-me da tumba para celebrar entre chorudos a sua
ascensão. Comoção a mistura de raiva pela desorganização da natureza norteou o
meu espírito fugitivo. Mas de tudo, a nostalgia foi maior.
Lembrei-me do pão partilhado entre nós, seus netos por
afecto e seus netos de sangue, sem nenhum separatismo. Pão e salada de alface
que ela cultivava na machamba do ka Rosa, caiam-nos bem, a sabor de óleo de
peixe sobrado da refeição de ontem, sentados bem embaixo da mafureira ou da
árvore das saborosas tangerinas que nos roubava as noites enquanto roubava-mos
em silêncio.
Vovó Sambo, como também a tratávamos, de capulana garrida
e lenço na cabeça que escondia o cabelo branco, de costas inclinadas pela
velhice, se quer deixava derrubar pela falta que o tempo nos dava do sagrado
alimento. Parava do muro e nos chamava lá de casa em surdina (para que a minha
mão não ouvisse e nos proibisse) para que fossemos ao raríssimo almoço que saia
das suas mãos de camponesa.
Felizes, nós, os netos de fora e os de casa, Marcinha,
Dinoca, Clarinha, sentados ao seu redor, nos deliciávamos. Saciar não era a
meta, o que valia mesmo, era enganar o estômago como mandam as normas da nossa
pobreza. Todas crianças da rua brincavam naquele quintal onde amizades
moldavam-se de dia e de noite, sem temermos as horas.
Tudo isso me vinha naquele dia 14, tarde de funeral
triste, em que um ciclo se fechava na vida daquela que era avó minha e de
outras crianças da minha rua, sem saber distinguir a ligação sanguínea.
Que lágrimas chorariam tão nobre idosa que de facto
precisava cessar as suas funções neste mundo em que apesar do bem maior, há
sempre espaço para invejas e desamores?
Enquanto hinos se entoavam para tornar sagrado o momento,
não me cabia lágrimas daquele fim, apenas estas e outras nostalgias. Das
quantas vezes alegres, em que de noite gritávamos canções infantis, corríamos
atazanados no seu quintal, entravamos lá dentro enquanto ela dormia,
desarrumávamos o quanto podíamos, roubávamos o milho e a mandioca para as
nossas barrigas cheias de vontades insaciáveis.
Lembro-me das orações obrigatórias que eram uma rotina na
hora de tomar qualquer refeição. Agradecer a Deus pelo alimento que nos dá sem
sermos cumpridores dos seus mandamentos. Orar pela barriga que vai saciar com
dois graus de arroz do sacrifício da velha que não sabe pensar só em si. Obrigado
Deus pelo pão-nosso de cada dia, isso tínhamos que dizer sempre, vovó Fina
fazia questão.
A morte é mesmo uma oportunidade para ingratos como nós
que enquanto vivas as pessoas não as sabemos glorificar como tanto merecem. É
uma oportunidade para os errantes caírem em si, comendo do próprio remorso,
fruto do desleixo da vida que se quer conhecem a sua origem. Lembrei-me do seu
modo de falar dos ma-Dindindi. Vovó
Fina que era de Ka Nhaka, pessoa multicultural e multivivida já falecida, como
era possível me lembrar de tanta coisa?
Vi lágrimas. Vi gente olhando ao além, sem certeza de que
viveriam para ver mais mortes. Vi dor esmagando gente sem compaixão, tal como
vi Deus a matar toda essa gente, sem se quer lembrar-se dos que ficam na terra.
Deus calado e sínico que levou o pai de Netinho, o tio Pedro, esposo da tia
Lalate; Levou a vovó Lodovina, a mu-Cabuverdiana;
Deus que matou a mãe da Yolanda ainda cheia de vida, matou a tia Laurinda e
ainda levou a minha irmã, mana Luizinha, o meu irmão, mano Orlando, o meu chará
e o meu pai. Deus bandido. Agora O vejo atento à minha mãe já viúva.
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