19.9.12

Morte a dentro de segunda à sexta-feira


SEGUNDA-FEIRA

Acho que estou morto. Vivo morrendo, na verdade. Estou perdido dentro de mim. Não encontro o chão das coisas. Tudo o que piso são pedaços de mim. Errante e constantemente peregrino cavalgo terras e outros mares entre as veias saturadas. Estou com o cabelo inchado, os olhos, a boca, as narinas e os ouvidos cheios. Sinto que o meu corpo está todo cheio de alguma coisa. As vozes parecem-me encher ainda mais. Tudo está cheio dentro de mim, do Norte ao Sul. No Este não encontro oceanos e no Oeste nenhuma fronteira. Estou cheio de mim. Acho que vou explodir! Vou rebentar as vivências e deixar o vazio que é o nada que sou.

TERÇA-FEIRA

Muitas são as vezes que ando sentado, ambulante e pedestre nas mortes que morro todos os dias quando o sol abraça o meio-dia. Não terá enterro nem deposição de flores ao dia oitavo! Morri na hora e em parte incerta. Cavalguei o céu em tempos em que ele estava nu e de costas viradas, embarquei com o sol ao meio, diante de canaviais enquanto outras barrigas negras rachavam centenas de vãos. Morri sentado com a minha gente imóvel. Olho o infinito, conformado com a tão estranha morte que morri no romper do dia, quando ele atravessava o Vénus a caminho do Marte.

QUARTA-FEIRA

Metas. Morro às quartas como cidadão de quinta. Não retorno chamadas nem dou respostas às mensagens não lidas. Mahatma morreu sentado no seu norte. Morreu de fome de paz. Morreu de sede acorrentado de ideais. Era à quarta que idolatrava o seu ente infiltrado num país que queria-o liberto. Na verdade era urgente libertar o homem antes que a paz se instalasse. Ao inverso, no meu país a paz é dada com sobras e aos homens a derrota de nunca se saber do seu paradeiro. Mortos ou vivos tanto faz, muitas mortes ocorrem de olhos abertos. Morro às quartas vezes pelos quatro cantos que o mundo tem e pela quadrática forma de ser desta liberdade que me rodeia. Morro à quarta como cidadão de quinta cujo corpo deambula pela sexta como herói que vai a enterrar no sábado chuvoso e sem chapa 100 no Patrice que nos leve a Gongodzuene. Morro escoltado de gente que me desconhece com rosas e cravos nas entranhas da harmonia existencial. Fé de Cristo, de onde me conhece esta gente toda que só exige de mim, metas!

QUINTA-FEIRA

Deixo os céus enfermos renegados pelos olhos enfurecidos desde ao primeiro dia. Olho para o chão que se afasta. Rastejo na ilusão das areias indefesas da saliva ardente de bebidas fermentadas com veneno. As mortes que me escalam atingem-me dissolventes. Era suposto viver por mais um instante ainda na correria dos solos que se afastam de mim. Corro. Canso. Meros devaneios. Cuspamos já para isto. Cuspamos já estas vidas que comemos ao jantar de ontem. Cuspamos já os sonhos que bebemos na manhã de hoje. Cuspamo-nos já de nós mesmos. Puxa! Não é normal tanta birra enquanto gente vagueia sem rumo nestes mesmos chãos que pisamos. Aqui está a quinta vez que me calo, pelas muitas vezes que quero viver este fim do mundo. Que lutas se enlaçam na derrota quotidiana dos homens? Muita pressa em tudo que nos rodeia, a vida e a morte correm apressados em mesma direcção. Quem chega primeiro?

SEXTA-FEIRA

Não conheço outras vidas que andaram por estas ruas. Apenas mortos caminham o escuro desta noite abençoada, de barrigas cheias de sangue e limão; corpos nus elevados ao mais infinito estremo da loucura, pé e bunda sarados, corpo e cabeça inchados, olhos e cabelos na pura lengalenga dos homens decepados antes do sol do sábado que ameaça antecipar-se. Vigarices! Estes mortos morrerão aqui e agora ao relento, como os ventos insolentes do Norte a Sul, rabo e juízo comprados pela bilha farta e carnes gordurosas. Compaixão às mulheres que rezam por esses defuntos homens, no dia em que hão-de morrer de tanta felicidade de ser pobres. Incrível! nunca vi tanta morte de uma só vez! Esta é a única chacina em que Deus deixou que os homens terminassem o trabalho antes de consumarem o seu instinto mortífero.

SÁBADO

Mesmo que o dia amanheça, não há luz nem energia; mesmo que o corpo se levante, não tem voz, não tem gesto, não tem vida. Mesmo que o dia amanheça, não haverá noite porque o escuro é este, não haverá gente porque as gentes são estas moribundas, não haverá a vida, porque o fim é este, a muito já escolhido pelos homens da terra. Vivo, a muito enterrado, morto, apenas a repetição da loucura que une os homens. A certeza de que morri e nada mais sou.

DOMINGO

Madrugada chuvosa. Manhã gelada com gente cantando. O mungir das almas espeta o sol frio e gelado. Flores fazem a decoração perfeita entre o jardim de rosinha e as campas seguidas de abelhas. Não há sossego nestes chãos. Em nada adianta o além. Aquém de nós está um Deus que nos cospe as fórmulas da morte de tempo em tempo. Deus nosso? Se não vejamos, onde está o tio Pedro, pai de Netinho e do pequeno Leão? Onde estão os assassinos da mãe da Yolanda que se quer teve quem lhe dissesse que tantos filhos aos 18 eram o prenúncio da pobreza? Em que lugar se encontra o pai do Abel que não o vê a crescer e a formar-se? Estão todos eles na igreja? Ah! Deus nosso que no céu Te encontras, estás cansado de estar só? Leva-me também.

Língua de Cão


Já não é carro cobrador de impostos
Nós descolonizámo-lo.
Já não é terror quando entra na povoação
Já não é Land-Rover do induna e do sipaio.
É velho e conhece todas as picadas que pisa.
É experiente este carro britânico
Seguro aliado do chicote explorador.
Mas nós descolonizámo-lo.
No matope e no areal
Sua tracção às quatro rodas
Garante chegada às machambas mais distantes
Às cooperativas dos camponeses.
Entra na aldeia e no centro piloto
Ruge militante nas mãos seguras do condutor
Obedece fiel a todas as manobras
Mesmo incompleto por falta de peças.
- Descolonizámos o Land-Rover (…)

Descolonizamos o Land-Rover, Albino Magaia, poeta moçambicano.


E começo assim este meu pacato discurso, como um verdadeiro assimilado e não falante da língua dos ma-Changana, ma-Ronga e outras etnias que faz de nós não mulungos, esta cor branca que nos torna(rá) gente nesta terra.
Começo assim este devaneio que me faz lembrar de uma pergunta que me é frequente: qual é a minha língua materna?

I
A quem disse-me que língua materna é aquela que nascemos e nos é ensinada logo a primeira, por outras palavras, é a primeira língua que falamos.

II
A quem disse-me que língua materna é aquela que me foi ensinada por minha mãe. Aquela que quando ela, a minha mãe, quando queria que me dirigisse a ela, a usasse.

III
A minha mãe é ma-Changana, por outras palavras, a minha mãe, nasceu em Chicumbane, distrito de Xai-xai, província de Gaza, sul de Moçambique.

IV
Nunca se quis saber, mas vou dizer, o meu pai é também ma-Changana, em outras palavras, o meu pai, nasceu em Novungueni, local onde graças aos heróis tombados, e como marca da descolonização (o que tem a ver Novungueni com o colono?) ganhou o nome de 3 de Fevereiro (dia dos heróis moçambicanos).

V
E eu? Eu nasci na Matola, província de Maputo e cá vivo. Se sou de Maputo? Bem, no meu bilhete de identidade vem “natural de Maputo”. Mas voltemos à questão: qual é a minha língua materna?

VI
Na verdade a primeira palavra que disse (ou que gostaria de ter dito) quando comecei a falar, foi “mamã”! E mamã que língua é?

VII
Volvidos bons exercícios do “mamã” fui dizendo outras coisas, como “quer água”, “quero comida”, “quer dormir com papá e mamã” e tantas outras palavras em língua portuguesa como minha mãe ensinava assim como os meus irmãos mais velhos e meu pai.

VIII
Saí a rua (a minha rua chamava-se rua “O”, agora, é Av. Mártires da Machava, outros heróis moçambicanos que tomaram lugar), brinquei com Netinho, Simone, Nina, Helena, Djossefa, Lulu, Florêncio entre outros. Todos eles, expressavam no moderno xi-Ronga misturado com xi-Changana, afinal, Maputo é terra dos ma-Rongas!

IX
O que sei é que a segunda língua, aquela a que os meus amgiso falavam, os meus irmãos disseram-me que era Dialecto. E quando a minha mãe me ouvia a falar, deva-me uma tareia dizendo “não fala a língua de cão”. Aliás, quando descobriram que eu ia falando alguma coisa daquilo, proibiram-me de sair de casa.

X
Quando comecei a estudar História (5ª classe) no capítulo que falava da dominação colonial portuguesa em Moçambique, vi que uma das formas dessa colonização era fazer com que os moçambicanos abandonassem a sua cultura, a tal “cultura de selvagens” e por conta disso, as línguas (como muitos outros hábitos culturais) foram proibidos e até definidas como a principal barreira para a nossa civilização. Por tanto, o xi-Changana e outras línguas nativas passaram a ser conhecidas como línguas de cães e, como tal, não podia o Homem, tido como único animal racional, falar.

XI
A minha mãe tal como outras mães que sabem “o que custou a liberdade” teceram que só conhecendo o Português é que se podia ser gente na sociedade. Realmente isso é um facto, descolonizado que foi o Português, já no Pós-colonial que vivia-se (ou vive-se) em que ele foi revogado como língua oficial, era de capital importância massificá-lo e fazer com que todo moçambicano o falasse.

XII
Voltando a questão: qual é a minha língua materna? Bem, volvidos anos de lá até cá, aprendi que embora tenha falado a primeira o Português, ele já mais será a minha língua materna. A minha língua materna é o xi-Changana, essa língua de cão que os meus ancestrais, os vovô Txutxululu, Gutleia, Bovane, Muntimuni, Injuasse, Nlhevo e Nambita, este último meu chará de tradição, falaram. E aquela que desde ao ventre da minha mãe, me foi ensinada e hoje, falo com orgulho de poder partilhar o que sou com outros povos, ciente de onde venho.

XIII
Hoje, aliás, mesmo o Governo está ciente da importância das línguas nacionais ou línguas nativas, tanto que já está em implementação o ensino bilingue em todas escolas primárias.

XIV
Em jeitinho de conclusão, posso (ou podemos) dizer que só agora, com essa consciência, em mim (como pode ser em qualquer cidadão moçambicano), é que ultrapassamos o período pós-colonial em Moçambique. Período em que faltava que nós, nos descolonizasse-mos de nós mesmos. 

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TEXTO DA MINHA ESTREIA NA REVISTA ELLENISMOS COM A COLUNA XITIKU NI MBAULA, DANDO AO MUNDO O SAL DO MEU SOLO PÁTRIO.

12.9.12

Na madrugada morreu Mpudzuini


Plazz…!!! Mais uma daquelas suas tossicas matinais, estendido aos primeiros raios solares. Hoje é até justo. É manhã de Julho, faz frio em Mapulanguene, mas nem por isso, madala Sope sempre fora assim.
Aos 87 anos de idade, vive os seus quase quarenta anos de solidão sem arredar o pé daquele banquinho de madeira, com o cobertor sobre os ombros, única herança de outra velhice.
Passam anos Sope sentado por cima do tempo, as rugas já não são de reclamar, rematiz à mistura do cansaço da vida que não passa para outras esferas já o sossegam como mero sobrevivente.
Desde tenra idade o velho Sope partilha os dias com o silêncio de gente, barulho das aves, saudades e escarros que são o seu único romper da voz que se cala desde tempos do seu avô. Faz 37 anos que Mpundzuini, seu filho, morreu. O infortúnio deu-se numa escura manhã de Março quando um grupo de homens e mulheres invadiram o dormitório de Mpundzuini acusando-o de roubo de seis patos lá para outro lado do povoado.
Tão sedo para sua idade, Mpundzuini viu a morte a visitar-lhe na madrugada de um dia que se quer estava ao alcance dos seus ancestrais como destinado o seu fim. Os populares que vinham na fúria da desgraça implantada pelo jovem filho de Sope, sem delongas puseram-se a destruir a cabana onde dormia Mpundzuini, repescando-o de seguida para fora. Daí, seguiram-se vassouradas, pedradas e socarias. Esbofeteavam e insultavam o jovem tido como ladrão.
O velho Sope apercebeu-se da confusão que se instalara no seu lar sempre sossegado, ainda saiu a gritar que os vândalos parassem, mas era já sem força na sua voz que sempre foi roca. Tossiu e rebentou gritarias, mas não deu em nada. A povoação vizinha estava toda ela intolerante. Como podia lhes roubar patos naqueles tempos de fome à mistura do deixa andar que lhes permitia fazer justiça com as próprias mãos!
Mpundzuini ainda olhou para seu velho pai atordoado pelo cenário que vivenciava. Sope viu o seu filho sentenciado a morrer de espancamento, ainda que lhe dessem a justa oportunidade de dizer ao menos se cometera ou não o tal delito. Mas não, que tem a falar um ladrão? E ai de quem ousar a defendê-lo.
Encravado entre a sova dos homens descamisados em pleno cinco da manhã e das mulheres de capulanas até ao cimo da barriga e bem amarradas, tão jovem que era, Mpundzuini amanheceu espatifado e gritando por dentro que não entende o que se passa.
Lá para o centro do povoado, mesmo defronte à casa do régulo, foi feita uma cova onde seria depositado o corpo do hoje julgado ladrão de patos e sem direito à recurso, condenado à morte. De vistas com a cova o velho Sope que seguia a população agressiva para com seu primogénito, sentiu um parto no coração, manchas de sangue sobravam-lhe no rosto que através dos olhos já tinham a certeza do fim que o filho teria. Aquela cova não era para ser sepultado o Mpundzuini, era sim, para enterra-lo vivo.
Foi tudo em fracções de segundos. Enquanto a escaramuça persistia, um grupo de homens já tinha preparado a cova que estava na forma horizontal. O outro grupo que vinha doutro lado com o jovem a ser espancado por todos, arrastando-o para aquele sítio, já sabia do que se seguia. Meteram-no na cova que cobria todo seu corpo de pé e de seguida, desataram a enterrar o buraco. Era o fim do castigo que um ladrão que põe fome no povoado merecia.
O velho Sope ainda lembra-se desse trágico episódio da sua vida e por isso, tosse sem mais algum interesse. Se lhe vem mais um ou dois copos de Uputsu pouco lhe preocupa, que verdade os homens têm para lhe oferecer que lhe possam doar tanto que ver o único filho a morrer de pé, clamando justiça, olhando para seu velho pai tão inútil para salva-lo para morte ainda em vida? Pensa e relembra o velho sem verter nenhuma lágrima. Que dor maior havia por chorar naquele momento em que já 37 anos passavam?