29.6.12

Dunga, o Estragado



Só na madrugada do dia 24 de Junho de 2012 conheci a sua verdadeira identidade: Luís Valente Funjua. Antes daquela madrugada em que copos de cerveja faziam a confraternização com a minha exclusiva presença (pela primeira vez) na barraca da tia Vitória, a vizinha esposa do tio Manhiça, o polícia, não poderá imaginar que Dunga ou Estragado, nomes que desde criança ouvi os moradores da zona a chamarem-no é Luís Valente. Sempre soube que seu pai é o madala Fúndjua, no jeito suburbano de se dar os nomes, mas a informação não passava disso. Eu mesmo, quem saberia que sou Eduardo Quive se não fosse esses jornais em que ando a laborar, rádios e televisões que me chamam para entrevistas e opiniões? A propósito, hoje me estreei como parte da equipe do jornal @Verdade, mais uma dessas coisas que me fazem ser pouco escritor e muito jornalistas.
E por esta veia da profissão acabei de me lembrar de tirar umas fotos ao Dunga enquanto estava nas habituais sessões de toques, hábitos que mais ganhou depois de ascender para loucura, vencendo os longos anos de lucidez que tivera. É isso mesmo Dunga é um extra-lúcido. E será problema de nome?
Mas esta coisa de nomes é mesmo verdade. Conta-se desde a infância na zona sobre Estragado, Dunga, o filho de quem não se sabe, mas esse era seu nome. Estragado. E como era? Era um estragado em pessoa, se não fosse, então estragava.
Estragado, enlouqueceu na flor da idade. Colheu perfumes de mortos em plena vidisse. Alimentou almas profundas com seu juízo. Ficou maluco de verdade, o Estragado. Estragou a cabeça e já não batia 100.
Na zona a história é assim contada.
Um dia o jovem Estragado, arrebentou as calças, girou consigo mesmo e entornou palavreados pela boca que não tirava simples falácias. Delirava. Gemia. Balbuciava. Patinava. Alucinava. Falava sem provérbios o que nem se quer se entendia. Todos assustaram-se. Pegou no pai a 25, pelas golas. Carregou o velho igualando-o à sua altura de dois metros, mesmo com pernas arqueadas. Estragado era alto. Corria quilómetros de altura. E com seu pai ao mesmo nível de altitude, rebentou a voz dizendo: Afinal quem é meu pai?
É verdade. Estragado estava decidido a estragar o pai para saber quem era seu pai! Uma tremenda loucura. Como pode? Perguntavam as bocas famintas de curiosidades.
Entretanto, o velho espinluncava sob o domínio do ora emouquecido filho, o Estragado. Tremia, transpirado até aos calcanhares. Calculava os metros que o separavam do chão com temor e ansiedade. Temor de lhe ser emprenhada uma aterragem brusca e ansiedade em estar de facto no chão que o seguraria com mais conforto. Estragado ainda dungava o pai com ameaça de o estragar caso não revelasse o grande segredo. Cavilhava-o, sem dó. Amassava-o. Esticava-o a pele rugosa juntando-a com a camisa pela gola. O velho tremia no olhar da vizinhança boquiaberta. Estragado não era homem de cometer tal delito. Nunca se vira, muito menos se imaginara tal atitude por parte de tão perene gente que era o Estrago. Então dali saiam as conclusões, Estragado estava mesmo de juízo estragado.
Enquanto agitado o quintal, a mãe chega de trás. Estragado solta o pai de imediato e vira para a mãe com a mesma indagação – quem é meu pai, mamã? – e nada de resposta. A mãe apenas palavreava de um lado para o outro. Vociferou em tons de ameaça contra o filho, mas este continuava e mais agressivo ainda.
Então, na ausência duma resposta que o satisfazia, Estragado correu para a cozinha e de lá, veio a rua com uma faca. Cortou a pele. Viu que era pouco. Pegou numa lâmina e foi depenando-se centímetro a centímetro, para a dor da mãe, senhora já separada do pai e vivendo no lar doutro homem no bairro vizinho. Já com o sangue a espaçar-se pelos braços, vira-se a mãe, dizendo:
Olha, mamã… olha para este sangue e diga-me a que pai pertenço? Sou filho de quem? Diga-me a verde, já!
A mãe era redundante no falatório, contudo, nada dizia sobre o pai do Estragado. E continuava a sua loucura, estragando-se a si próprio. Até hoje, diz-se na zona, Estragado está maluco. Caso para entrar nos dizeres da população, os nomes fazem a personalidade do homem. Como pode Estragado ser nome de alguém que nem se quer é estragado? Consequência, agora estraga-se a si próprio, estraga o murro dos vizinhos, estraga corpos agredindo e etc.

Mas na sua loucura, Estragado também arranja, continua um bom pedreiro como aquele dos tempos da construção da barraca da minha casa e de muitas outras infra-estruturas a nível local e não só; Pintor e rachador de lenha, para além de ter boas habilidades para cabeceador de bolas e carregador. 

22.6.12

Madala Pire


Enquanto andavam os tempos, cresciamos entregues aos mistérios da idade. Como é uma pessoa com barba branca? Velho e monco? Como é que se forma aquela voz quase trémula? Que juízo compõe gente daquela espécie? Todos debatíamos sobre a velhice e os velhos.
Madala Pire, era um desses que nos roubava o sossego, ao mesmo tempo que era motivo de discontração e felicidade para nós, crianças. Vivendo mesmo na casa que encosta a parte traseira da minha casa, Pire, mais velho que outros velhos, partilhava os tempos da sua terceira idade pastando cabras e xiphóngos lá para as bandas de Singathela, bairro vizinho onde até morra o David e a minha recente antiga namorada, Rosinha.
Lembro-me, e como me lembro! dos dias que corriam os nossos desejos ensegados pelo medo da idade, eu e Elzínia, na zona chamada por Rosinha, mordiamo-nos os corações cobiçando-se mutuamente. Conheci-a enquanto caminhava para a escola secundária, lá no bairro São Dâmaso, eu fazia a minha oitava e ela a nona. Elzínia é inteligente, isso que não se negue. Elzínia é linda e elegante, isso que não se negue. Elizínia era também tímida e inocente, isso que também se aceite. Foram esses encantos que me levaram para seu canto. Foi o seu falar silencioso e andar desapegado às pegadas que me levaram para junto de si. Eu queria de verdade a Rosinha. Eu a desejava de verdade. Elzínia era motivo da minha vaidade. Crescia aos seus olhos e ao seu andar lá por onde os cabritos do velho Pire comiam o capim verde e fresquinho.
Quando passasse da rua, lá para o anoitecer, com os seus dois cabritos, toda criançada reunia-se a sua volta, gritando seu nome: vovó Pire, vovó Pire!!!. Cantávamos e dançava-mos o seu nome que agora já a caminho de ser velho também, faz-me achá-lo semelhante à palavra Primo. Os velhos do meu suburbano bairro também tratavam primos de pirima. Ah, ainda a bocado tive um colega na Escola de Jornalismo que de apelido era Phiri, ele é natural de Quelimane.
Mas o verdadeiro Pire, o madala da rua “P” de trás da minha casa, era mesmo um mistério. Uma velhice à semelhança do nwa massaia, madala Sitoi e Balimone, este último avó de Tucha, minha primeira dama, que nos conhecemos enquanto eu fingia-me saber e gostar de jogar a bola. Tucha era a fonte de inspiração de muitos miúdos da rua, incluindo, principalmente, os mais crescidos e já conhecedores do sexo, como os Sanito, Paíto e Xandito. Mas Tucha já me tinha escolhido. Queria eu, Dodoca menino que tão pouco se importava com missivas sexuais. Apenas o ser criança me cabia. Queria jogar sem saber, cantar as canções da pequenada e fazer o teatro no 1 de Junho como era de costume na escola primária que frequentava na altura.
E Pire, enquanto atravessasse a nossa rua, rua “O”, todos corríamos ao seu encontro cantando o seu nome. Ele correspondendo nalgumas vezes e noutras não. Mas era um madala, muitas vezes até metido a espertalhão.
As grandes bocas, contam que Pire era um velho que não se deixava dominar pela idade. Diziam que Pire, quando passasse por um grupo de senhoras todas elas ficavam molhadas ! Isso é verdade e ainda vos digo, vocês, as senhoras contam que sentiam uma exitação exacerbada. Como se algo les acarenciasse. De seguida, já se sentiam penetradas, o seu orifício gotejava a respectiva saliva da satisfação. Gemiam. Berravam e ficavam assoladas por um prazer invisível.
Era Pire - contavam elas - o madala Pire, tinha massónica. Comia mulheres de dono através de remédios. Dizem que isso é que lhe tornava um pouco jovem e que se não tivesse acesso a tais hábitos, saía escamas por todas as partes do corpo, incluindo nos órgãos genitais. Isso de escamas, confirmo. Pire tinha makhwakhwarimba. Escamas. Parecia peixe de tanto subcarneamento. Parecia Mingas, a filha do tio Luís que quando comesse peixe da água doce saía também escamas. Conta’se que os Ngunis também são assim. São irmãos de peixe e não se podem comer. Mas para vovó Pire, isso acontecia quando não usasse as suas massónicas. Mas logo a seguir escolhia uma vítima e a penetrava invisivelmente. Satisfazia-se do sexo alheio. Muitas foram as mulheres que terão tido filhos de Pire.
Mas vá que descoberto, todas começaram a distanciar-se do velho! Já percebiam que os gemidos vinham da aproximação com o velho.
As grandes bocas, contam ainda que abandonado pelas mulheres que já não ficavam próximas de si, o velho pautou por fazer sexo com as cabras! É verdade. Pire mantinha as cabras como fonte de satisfação sexual. Penetrava-as.
Tudo isso, criança que éramos, nos assustava! Começamos também, nós os homens, a temer madala Pire.
E lá foram os dias. Pire ia envelhecendo até que Deus o queria por perto. Primeiro morreu numa tarde em que a notícia se espalhou logo-logo. Todos tomamos conhecimento e foi mesmo uma notícia na boca do estômago. Um choque. Madala Pire morreu!
De noite, já criadas as condições de se decidir o seu velório e com toda sua família reunida acompanhada pelos populares residentes do patrice, com o corpo a ser preparado para que na manhã seguinte fosse a enterrar, eis que o insólito acontece… o morto levantou0-se e pediu comida. É verdade. Madala Pire terá recusado ou inventado a sua morte? Verdade ou mentira, ficou espalhado pela zona que o velho terá inventado a morte por sentir fome.
Num outro dia, passado algum tempo, o velho voltou a bater as botas, dessa vez ninguém se importou. A notícia rodou por toda a parte, mas todos achavam motivo de graça. Mas dessa vez, o velho foi até a tumba. Morreu. O seu enterro vou afluído pelas massas, conhecidos e desconhecidos curiosos em saber se Pire morreu de verdade ou é mais uma daquelas suas invenções. Eu próprio, na minha pequeneza, terei perguntado se dessa vez terá morrido de verdade ou não. Mas na verdade madala Pire morreu. Inclusive, os seus cabritos, terão desaparecido com o sucedido. As grandes bocas falam que usava-os para os seus feitiços e que na verdade não existiam. 

20.6.12

Éramos Crianças

 
 Éramos crianças
Apadrinhados pela fome,
Isolados do banquete.
De camisetas de umbigo fora
Jeans rasgados
Mas não era moda,
Era a desgraça debuxada
Em nosso seminu corpo.
Pálidos, desnutridos
Enterrados no areal
Na roda de matacuzana
Em equipas para jogar xingufo
Sorridentes brincávamos.
Éramos crianças
Francisco Júnior
E éramos crianças, nas pétalas do jardim da vida, açoitados de espectro do futuro em plena mocidade, fecundos na incerteza dos dias, despreocupados com a duração dos tempos, apaziguados de doces canções melódicas do mbalele mbalele, o tana u talhomela nkata, o banana e outras escondidas escondíamos no tempo as memórias do hoje adulto que vivemos, na cabra-cega da vida em que só o dilúvio reina.
E éramos crianças, eu e Marcinha, antes do abandono dos inhas, de mãos dadas para o horizonte, de mãos dadas para o além, de mãos dadas no ntumbeleluana atrás da casa de caniço do mulato, escondidos da vergonha do mundo, apossados pela paixão da idade, no coito da paixão miúda. Quem diria que hoje essa menina seria Márcia!
E as lindas noites de lua cheia, errantes pelas horas que não as víamos passar, crianças que éramos empoeirados depois do banho forçado às 17 horas, agrupados na rua em pleno 10 da noite e por vezes, duas da manhã nas noites de Dezembro.
E éramos crianças, meninos pobres do pacato Patrice que o vimos a ser apossado de gente e de epidemias, sarna, diarreias, matequenhas, gravidezes e loucuras. Ah! Nostalgia sinto quando nesses tempos navego, quando desses momentos me lembro. O Henrique, filho do velho Fúndjua, o rebelde e reguila que torturava e atormentava a todos com sua porrada, feiura e agiotagem já aos 15/17 anos; das dívidas que cobrava à gente mais nova sem que o devessem; da tareia que deu ao Netinho, este por sua vez, queixava à sua mãe, tia Lalate, que saía à rua com fúria de cão, o Dox da minha casa, morto por vayives da zona, e lutava com o Henrique diante dos aplausos de toda a rua, crianças e adultos arruaceiros, ao estilo do nosso suburbano modo de viver no Patrice.
E era um caminho, esse que o Henrique escolhia, das pedradas que deu ao Lopes quando o xingondo se recusava de pagar o habitual imposto de circulação pela rua. Um dia, tirou com uma garrafa partida, olho da sua cunhada e afugentou-se para África do Sul, onde se encontra até hoje, supostamente com seu irmão Mathumana, outro conhecido cobrador de tributos.
Ah! Lembro-me do dia que ele nos encontrou nos derradeiros momentos do madjokodjoko entre eu e a Helena, sua irmã que, cansada de reprovada mais de 3 vezes na sétima classe, optou também pelo jone, voltou depois de um tempo e engravidou do primo com a idade ainda por explorar.
Lembro-me do Pala que no madjokodjoko na barraca de chapas de zinco soldado por seu pai, tio Zefanias, já falecido, em que estavam também, o Simone e Netinho, negou de fazer com Helena, a vizinha, queria fazer com sua irmã, Nina, esta que hoje já conta filhos ainda na flor da idade. Nem se quer era problema fazer madjokodjoko com própria irmã, éramos crianças e só entre nós ficou o segredo, no entanto, reféns ao agiota Henrique, que por muito tempo nos chantageava.
Lembro-me também, por causa dessa sessão, da má fama que tive na altura por não ter feito a circuncisão. Aliás, lembro-me do quão, Simone, Pala e outras crianças sofreram na tesoura do vovó Banze, enfermeiro que vive na zona quem se responsabilizou por cortar os bichos do pessoal. Simone passou os dias de capulana e andando de pernas abertas saltitando de dor em cada tocadinha que dava no seu bicho. Todos nos ríamos. Não do sofrimento dele, mas da graça que tinha vê-lo naquele embaraço.
Mas éramos crianças, na hegemonia dos tempos, vendo tudo a acontecer com a nostalgia que tais factos mereciam na nossa inocência, quando pulávamos de casa em casa pedindo assistir, entre sins e nãos da minoria vizinhança que tinha condições. Quanto a mim, o televisor preto e branco da minha casa, tão pequenininho, mas cabendo a gente de quase toda rua, já tinha avariado.
Lembro-me das laranjas da casa da tia Artmisa, a casa que com muito carinho deixava-nos assistir as tão amadas por nós, novelas brasileiras, furtávamo-las enquanto saíamos. E éramos apenas crianças!
Lembro-me de quando jogávamos a bola defronte a casa do tio Pedro, pai do meu sobrinho mais velho Luís, do Francisco, Rosinha, Amélia, Florêncio, Guilherme, Ngelina, Ngeli, Ngeu, Pedó, Miloca e Mevasse, a chará da tia Vitória esposa do tio Manhiça, o polícia. Mateu 7, a vovó Rosalina pegava na bola improvisada de trapos, quando entrava no quintal da casa, para depois incendiá-la e em jeito de proclamar a sua vitória, chamava-nos e reunia-nos em volta daquela fogueira e repetia o seu sermão que lhe fez merecer o evangélico nome de Mateu 7 “é proibido jogar em frente da casa”. E mesmo doutro lado do seu quintal reside o tio Luís, o que bebia e insultava por toda a rua e algures. Este também nos impedia de jogar ali, embora estivéssemos connosco os seus filhos, Paíto, Genito, Lulu e Djossefa, filhos das suas esposas, a tia Palmira e Laurinda, está última já nos cuidados divinos.
Foram tempos. Tempos que éramos crianças e “desentendidamente” construímos o nosso hoje.

8.6.12

Angélica, minha esposa


Era criança quando nos casamos. Foi no verão de 1999 quando casei-me com Angélica, a filha do tio Fernando, o falecido carpinteiro manhembana da zona, chato que até roía os dentes enquanto raspava a madeira que lhe dava o sustento.
Na rua, andava a fama de que tio Fernando era apenas chato para a esposa, tia Isaura, também de Inhambane e filhas, mas de homem não tinha bravura. As grandes bocas espalharam que já entrou um ladrão na sua casa e que para lograrem seus intentos, usavam uma pistola de brinquedo. Conta-se que os mesmos ao invadir a casa que tinha o murro de espinhosas, direccionaram-se ao quarto em que o falecido dormia com a sua esposa. Apercebendo-se da presença dos larápios, levantou-se e abriu a janela dando de caras com os mabandido, estes que com a pistola apontada ao seu rosto, disseram: “não se mexe”. O homem ficou seco. Pegou uma paralisia instantaneamente, dando assim, o acesso livre aos ladrões que foram roubando ao seu bel-prazer.
De resto, muito não se falava dele, além do nome que lhe atribuíram de Tchelomba, pelo seu sotaque misturando Changana e Bitonga. Mas tio Fernando era pai da Angélica, a minha esposa de infância. Lembro-me muito bem do dia em que foi o nosso casamento eu com oito anos de idade. A Rassi, filha do tio Jonas e da tia Amélia e irmã de Nando, Pedrito, Ntone, Vitorino e Handzul.
Pedrito, depois de ter ficado muito tempo na África do Sul, decidiu voltar ao país e para casa dos pais. Mas como tio Jonas ganhou na rifa, tinha decidido comprar um terreno lá para São Dâmaso e fez uma barraca com o nome “Quinta da Lua”, por onde marrara cuidando dos negócios do pai. Já o Nando ou Nandix como é, em jeito de gozo, tratado, enquanto apostava também pelo djône, investia nas mulheres. Lembro-me daquela que terá sido a sua primeira esposa, a mana Alzira, a vendedora de tomate no bazar do bairro e ainda lobolou depois a Belinha, uma encantadora jovem, com uma cintura conquistadora de olhares nos homens da zona, incluindo as crianças das quais não me excluo. Com a Belinha, pareceu que as coisas seriam boas, mas nada. Voltou da África do Sul num desses natais como era habitual dos madjonidjonis, embebedou-se e encheu de chutes, bofetadas e cabeçadas a Belinha. Rachou-a quase todo o rosto com a porrada começada no quintal de casa para rua sob o olhar de todos. Eu vi cada cacetada que levou a mana Belinha, senti muita pena e muito medo do Nandix, aquele que se parecia mais sério dos filhos do tio Jonas. O pai do Manuelito. E foi sendo assim com a mana Dionora e outras miúdas com que viveu maritalmente.
Ntone ou My Bro, como se afamou pela sua mistura do inglês que já tinha habituado pelas andanças pelo djône, é o penúltimo. Esse aventurava-se pelos carros e motos, investia mais na luxúria.
O Handzul é o que mais fama ganhou pela zona porque era de conduta duvidosa, alguns chamaram-no de ladrão, fumava e bebia, sustentando a vaidade do tempo. São incontáveis as vezes que a polícia fora lá para a rua a sua procura, para leva-lo aos calabouços. Terá até chegado à cadeia de máxima segurança. Este fora o mais problemático entre os sul-africanados filhos do tio Djona. Mas no entanto, o que também se converteu a bom homem.
Vitorino também deu alguns problemas. Era amigo do Gabito, o filho da vovó Eva e do vovô Ubisse. Eram verdadeiros amigos, bebiam e fumavam juntos, mas o problema era um e único: quando se embriagavam lutavam entre si. Espancavam-se. Partiam-se. Era uma tremenda violência. Lutavam na rua e se alguém os acudisse, tal como fazia a tia Vitória, a esposa do tio Manhiça, cada um entrava para a sua casa e buscava um instrumento contundente. Tudo servia, afinal, já se viam como inimigos mortais. O Gabito, amavelmente tratado por Mugabe, pela sua mãe, quando entrava para sua casa, saía no mínimo com uma garrava, partia-a na cabeça do Vitorino, este mais raivoso ainda, ganhava forças sobrenaturais, ia para sua casa e levava uma pá bem cumprida e afiadíssima, atirava-a contra Gabito. Instalava-se o pânico total enquanto os menos atrevidos para acudir comentavam “i vangano”, são amigos eis o significado dos dizeres. Depois de acudidos, aceitavam dormir, os pais simulavam uma conversa para apaziguarem-se enquanto os filhos já dormem. Dia seguinte, eram novamente amigos. Eu admirava a tão forte amizade desses dois!
Gabito era mesmo um homem do álcool, uma vez, bebeu até às tintas, azedou o cérebro e ficou agressivo. Ninguém segurava-o. Nem ele próprio. Entrou na sua casa gritando e partindo tudo que encontrava a sua frente. Abanou árvores e partiu ramos; Estrangulou a cozinha feita de madeira e zinco; deu o pontapé nas panelas que levaram para o chão o alimento do dia; Esmagou a areia que o sustentava em terra. Entrou para dentro onde descansava a sua mãe, pegou nela e encheu de porrada. Nesse momento todos vizinhos já tinham invadido a casa para acudir, incluindo, a tia Vitória que sempre fez questão de presenciar esses momentos de lufa-lufa. Mas só o meu irmão, o mano Victor, conseguiu derruba-lo e deu-lhe uma tareia também. Onde já se viu na educação tão suburbana que nós temos, um filho bater na própria mãe? Era o fim do mundo! O meu irmão amarrou-o na árvore por onde repousou a sua fúria até o amanhecer. Por fim, decidiu seguir o caminho do seu irmão Txône, foi para África do Sul, não optando, portanto, em ir a Lesoto onde se encontrava o seu mais velho irmão, o mano Evaristo e pela Suazilândia, por onde andara Lindo, ou Xicadjuana, como eu li tratava, para depois ele me chamar de Xicaroce.
Por meio desse cenário consumou-se o meu amor com Angélica, até o anúncio da decisão e da data de casamento às nossas famílias.
Já no dia de casamento, estava toda a rua e ruas vizinhas, informados sobre a festa. Tudo era de verdade. A Rassi e Dinoca, esta última filha da tia Sandrinha e neta da vovó Sambo que vivia enfrente da minha casa, foram as que prepararam o bolo do casamento e outros doces. A festa, contrariamente ao que acontece nos tradicionais casamentos, foi apenas na casa da tia Isaura, nessa altura, já viúva do falecido tio Fernando. Tudo esteve lindo até ao mínimo detalhe. As folhas dos coqueiros cortadas e através delas feita a decoração da entrada que usariam os noivos de modo a dar a devida sorte, a farda de capulanas nas mulheres bem ensaiadas nas vozes que entoavam as canções típicas da ocasião.
 A minha mãe tinha me comprado um fatinho de treino novo e sapatilhas para usar no dia do casamento. Comprou-me também uma nova escova de dentes e fez questão de me fiscalizar no banho. Fez os devidos arranjos para que o seu filho não se parecesse marginal diante dos familiares da noiva. E era mesmo um príncipe, Angélica, a princesa. Ela estava linda, de capulana e uma blusa garrida. Uma autêntica noiva como a das novelas com as respectivas biqueiras. Estávamos preparados para nos casar perante os nossos pais e vizinhos. Tudo apostos.
Num verdadeiro acto de anunciação desse matrimónio, fizemos um desfile pela rua toda na companhia do corro de homens e mulheres que cantavam na maior emoção. Deliravam de alegria em ver um casamento do príncipe e da princesa. E nós assumindo a postura dos noivos, como os nobres do dia, longe da pobreza e das desigualdades, caminhávamos aos passos lentos. Abraçados entre braços cruzados. Sorriamos civilizadamente, quase sem abrir a boca enquanto todos vinham à nossa trás, os nossos amigos e admiradores provenientes doutras ruas iam estendendo esteiras por onde rigorosamente passávamos. Ah! Angélica, tu és a mulher mais linda do mundo! Amo-te muito. Ah! Dodoca, eu te amo muito, você é amor da minha vida! Eram esses nossos suspiros no silêncio.
Chegados à casa da Angélica, onde tudo e mais gente nos esperavam, incluindo as nossas mães que passaram a se chamar de masseves por nossa causa, estavam lá, a espera dos noivos que éramos nós. Fomos recebidos com os devidos nkulunguanas e outros ululus dos presentes. A mutchato i lembe wanê! Cantavam todos. A Marcinha também estava, o Netinho, o Simone. Todos estavam. E eu lindo perante a Angélica que até pintou batom naqueles magros lábios.
Com o auxílio das madrinhas, Rassi e Dinoca, cortamos o bolo que nos demos de comer e demos aos presentes. Depois demo-nos de beber a fanta. De seguida, foi o que mais irradiou o momento, o beijo. Todos cantavam o kissananane. E nos beijamos. Demo-nos o beijo de amor, na vontade de imitar os beijos das novelas brasileiras. Ah! O beijo da Angélica era tão doce. Lembrava-me o mel que o meu pai usava para a ferida, das colheradas que dei para me deliciar daquele açúcar natural.
Depois foi a vez da festa. Comemos e dançamos os cânticos tradicionais saindo das bocas fartas de alegria que nos iam abraçando. Foi uma festa inesquecível, a do meu casamento.
Ao entardecer, nos debatemos com a questão da lua-de-mel. Haverá lua-de-mel como acontece no casamento da novela? Onde seria? Faria eu, sexo com Angélica? Como o faria? E debatíamo-nos cada um no seu habitual silêncio. E nem se quer nos demos tempo do adeus. A Angélica e seus irmãos já com a situação crítica depois do falecimento do seu pai rumaram com a sua mãe par parte incerta. Andaram por um tempo para algures, perto do patrice. Até cheguei a ver a sua mãe e a Cecília, sua irmã por uns tempos. Ah! Sentia muita nostalgia sempre que visse a minha sogra Isaura, sem poder a perguntar sobre a minha esposa, Angélica. Hoje mulher que já deve ser Angélica, se quer lembrar-se-ia de mim, o Dodoca, seu marido de infância.
Inédito
Um presente para as crianças do Patrice Lumumba, meu bairro
e dos suburbanos bairros do meu país.
Eduardo Quive
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GLOSSÁRIO:
Manhembana – que é de Inhambane
Mabandido – Bandidos
Changana – povo/língua da província de Gaza (com forte influência na província de Maputo)
Bitonga – povo/língua da província de Inhambane
Lobolou – quem casou tradicionalmente
Djône – Expressão em XiRonga para referir a África do Sul
Madjonidjonis – moçambicano que trabalha na África do Sul (muito frequente na região sul de Moçambique)
Xicadjuana – proveniente da expressão em XiChagana “Cadju” que se refere ao Caju. Xicadjuana que é um Caju pequeno.
Xicaroce – proveniente da expressão “Ncaroce” que se refere à Castanha de Caju.
Masseves – pais dos noivos.
Nkulunguanas – Algazarra. Gritos e ritmos feitos para manifestar alegria.
Ululus – som saído dos Nkulunguanas
A mutchato i lembe wanê – canção popular frequentemente cantada nos casamentos no sul de Moçambique.
Kissananane – expressão em XiRonga originária do inglês “Kiss” para referir a um beijo. Kissananane – beijem-se.

EU & EU


Poema