Era criança quando nos casamos. Foi no verão de 1999
quando casei-me com Angélica, a filha do tio Fernando, o falecido carpinteiro manhembana da zona, chato que até roía
os dentes enquanto raspava a madeira que lhe dava o sustento.
Na rua, andava a fama de que tio Fernando era apenas
chato para a esposa, tia Isaura, também de Inhambane e filhas, mas de homem não
tinha bravura. As grandes bocas espalharam que já entrou um ladrão na sua casa
e que para lograrem seus intentos, usavam uma pistola de brinquedo. Conta-se
que os mesmos ao invadir a casa que tinha o murro de espinhosas,
direccionaram-se ao quarto em que o falecido dormia com a sua esposa. Apercebendo-se
da presença dos larápios, levantou-se e abriu a janela dando de caras com os mabandido, estes que com a pistola
apontada ao seu rosto, disseram: “não se mexe”. O homem ficou seco. Pegou uma
paralisia instantaneamente, dando assim, o acesso livre aos ladrões que foram
roubando ao seu bel-prazer.
De resto, muito não se falava dele, além do nome que lhe
atribuíram de Tchelomba, pelo seu sotaque misturando Changana e Bitonga. Mas
tio Fernando era pai da Angélica, a minha esposa de infância. Lembro-me muito
bem do dia em que foi o nosso casamento eu com oito anos de idade. A Rassi,
filha do tio Jonas e da tia Amélia e irmã de Nando, Pedrito, Ntone, Vitorino e
Handzul.
Pedrito, depois de ter ficado muito tempo na África do
Sul, decidiu voltar ao país e para casa dos pais. Mas como tio Jonas ganhou na
rifa, tinha decidido comprar um terreno lá para São Dâmaso e fez uma barraca
com o nome “Quinta da Lua”, por onde marrara cuidando dos negócios do pai. Já o
Nando ou Nandix como é, em jeito de gozo, tratado, enquanto apostava também
pelo djône, investia nas mulheres.
Lembro-me daquela que terá sido a sua primeira esposa, a mana Alzira, a
vendedora de tomate no bazar do bairro e ainda lobolou depois a Belinha, uma encantadora jovem, com uma cintura
conquistadora de olhares nos homens da zona, incluindo as crianças das quais não
me excluo. Com a Belinha, pareceu que as coisas seriam boas, mas nada. Voltou
da África do Sul num desses natais como era habitual dos madjonidjonis, embebedou-se e encheu de chutes, bofetadas e
cabeçadas a Belinha. Rachou-a quase todo o rosto com a porrada começada no
quintal de casa para rua sob o olhar de todos. Eu vi cada cacetada que levou a
mana Belinha, senti muita pena e muito medo do Nandix, aquele que se parecia
mais sério dos filhos do tio Jonas. O pai do Manuelito. E foi sendo assim com a
mana Dionora e outras miúdas com que viveu maritalmente.
Ntone ou My Bro,
como se afamou pela sua mistura do inglês que já tinha habituado pelas andanças
pelo djône, é o penúltimo. Esse
aventurava-se pelos carros e motos, investia mais na luxúria.
O Handzul é o que mais fama ganhou pela zona porque era
de conduta duvidosa, alguns chamaram-no de ladrão, fumava e bebia, sustentando
a vaidade do tempo. São incontáveis as vezes que a polícia fora lá para a rua a
sua procura, para leva-lo aos calabouços. Terá até chegado à cadeia de máxima
segurança. Este fora o mais problemático entre os sul-africanados filhos do tio
Djona. Mas no entanto, o que também se converteu a bom homem.
Vitorino também deu alguns problemas. Era amigo do
Gabito, o filho da vovó Eva e do vovô Ubisse. Eram verdadeiros amigos, bebiam e
fumavam juntos, mas o problema era um e único: quando se embriagavam lutavam
entre si. Espancavam-se. Partiam-se. Era uma tremenda violência. Lutavam na rua
e se alguém os acudisse, tal como fazia a tia Vitória, a esposa do tio Manhiça,
cada um entrava para a sua casa e buscava um instrumento contundente. Tudo
servia, afinal, já se viam como inimigos mortais. O Gabito, amavelmente tratado
por Mugabe, pela sua mãe, quando entrava para sua casa, saía no mínimo com uma
garrava, partia-a na cabeça do Vitorino, este mais raivoso ainda, ganhava
forças sobrenaturais, ia para sua casa e levava uma pá bem cumprida e
afiadíssima, atirava-a contra Gabito. Instalava-se o pânico total enquanto os
menos atrevidos para acudir comentavam “i
vangano”, são amigos eis o significado dos dizeres. Depois de acudidos,
aceitavam dormir, os pais simulavam uma conversa para apaziguarem-se enquanto
os filhos já dormem. Dia seguinte, eram novamente amigos. Eu admirava a tão
forte amizade desses dois!
Gabito era mesmo um homem do álcool, uma vez, bebeu até
às tintas, azedou o cérebro e ficou agressivo. Ninguém segurava-o. Nem ele
próprio. Entrou na sua casa gritando e partindo tudo que encontrava a sua
frente. Abanou árvores e partiu ramos; Estrangulou a cozinha feita de madeira e
zinco; deu o pontapé nas panelas que levaram para o chão o alimento do dia;
Esmagou a areia que o sustentava em terra. Entrou para dentro onde descansava a
sua mãe, pegou nela e encheu de porrada. Nesse momento todos vizinhos já tinham
invadido a casa para acudir, incluindo, a tia Vitória que sempre fez questão de
presenciar esses momentos de lufa-lufa. Mas só o meu irmão, o mano Victor,
conseguiu derruba-lo e deu-lhe uma tareia também. Onde já se viu na educação
tão suburbana que nós temos, um filho bater na própria mãe? Era o fim do mundo!
O meu irmão amarrou-o na árvore por onde repousou a sua fúria até o amanhecer. Por
fim, decidiu seguir o caminho do seu irmão Txône, foi para África do Sul, não
optando, portanto, em ir a Lesoto onde se encontrava o seu mais velho irmão, o
mano Evaristo e pela Suazilândia, por onde andara Lindo, ou Xicadjuana, como eu
li tratava, para depois ele me chamar de Xicaroce.
Por meio desse cenário consumou-se o meu amor com
Angélica, até o anúncio da decisão e da data de casamento às nossas famílias.
Já no dia de casamento, estava toda a rua e ruas
vizinhas, informados sobre a festa. Tudo era de verdade. A Rassi e Dinoca, esta
última filha da tia Sandrinha e neta da vovó Sambo que vivia enfrente da minha
casa, foram as que prepararam o bolo do casamento e outros doces. A festa,
contrariamente ao que acontece nos tradicionais casamentos, foi apenas na casa
da tia Isaura, nessa altura, já viúva do falecido tio Fernando. Tudo esteve
lindo até ao mínimo detalhe. As folhas dos coqueiros cortadas e através delas
feita a decoração da entrada que usariam os noivos de modo a dar a devida
sorte, a farda de capulanas nas mulheres bem ensaiadas nas vozes que entoavam
as canções típicas da ocasião.
A minha mãe tinha
me comprado um fatinho de treino novo e sapatilhas para usar no dia do
casamento. Comprou-me também uma nova escova de dentes e fez questão de me
fiscalizar no banho. Fez os devidos arranjos para que o seu filho não se
parecesse marginal diante dos familiares da noiva. E era mesmo um príncipe,
Angélica, a princesa. Ela estava linda, de capulana e uma blusa garrida. Uma
autêntica noiva como a das novelas com as respectivas biqueiras. Estávamos
preparados para nos casar perante os nossos pais e vizinhos. Tudo apostos.
Num verdadeiro acto de anunciação desse matrimónio,
fizemos um desfile pela rua toda na companhia do corro de homens e mulheres que
cantavam na maior emoção. Deliravam de alegria em ver um casamento do príncipe
e da princesa. E nós assumindo a postura dos noivos, como os nobres do dia,
longe da pobreza e das desigualdades, caminhávamos aos passos lentos. Abraçados
entre braços cruzados. Sorriamos civilizadamente, quase sem abrir a boca
enquanto todos vinham à nossa trás, os nossos amigos e admiradores provenientes
doutras ruas iam estendendo esteiras por onde rigorosamente passávamos. Ah!
Angélica, tu és a mulher mais linda do mundo! Amo-te muito. Ah! Dodoca, eu te
amo muito, você é amor da minha vida! Eram esses nossos suspiros no silêncio.
Chegados à casa da Angélica, onde tudo e mais gente nos
esperavam, incluindo as nossas mães que passaram a se chamar de masseves por nossa causa, estavam lá, a
espera dos noivos que éramos nós. Fomos recebidos com os devidos nkulunguanas e outros ululus dos presentes. A mutchato i lembe wanê! Cantavam todos.
A Marcinha também estava, o Netinho, o Simone. Todos estavam. E eu lindo
perante a Angélica que até pintou batom naqueles magros lábios.
Com o auxílio das madrinhas, Rassi e Dinoca, cortamos o
bolo que nos demos de comer e demos aos presentes. Depois demo-nos de beber a
fanta. De seguida, foi o que mais irradiou o momento, o beijo. Todos cantavam o
kissananane. E nos beijamos. Demo-nos
o beijo de amor, na vontade de imitar os beijos das novelas brasileiras. Ah! O
beijo da Angélica era tão doce. Lembrava-me o mel que o meu pai usava para a
ferida, das colheradas que dei para me deliciar daquele açúcar natural.
Depois foi a vez da festa. Comemos e dançamos os cânticos
tradicionais saindo das bocas fartas de alegria que nos iam abraçando. Foi uma
festa inesquecível, a do meu casamento.
Ao entardecer, nos debatemos com a questão da lua-de-mel.
Haverá lua-de-mel como acontece no casamento da novela? Onde seria? Faria eu,
sexo com Angélica? Como o faria? E debatíamo-nos cada um no seu habitual
silêncio. E nem se quer nos demos tempo do adeus. A Angélica e seus irmãos já
com a situação crítica depois do falecimento do seu pai rumaram com a sua mãe
par parte incerta. Andaram por um tempo para algures, perto do patrice. Até
cheguei a ver a sua mãe e a Cecília, sua irmã por uns tempos. Ah! Sentia muita
nostalgia sempre que visse a minha sogra Isaura, sem poder a perguntar sobre a
minha esposa, Angélica. Hoje mulher que já deve ser Angélica, se quer
lembrar-se-ia de mim, o Dodoca, seu marido de infância.
Inédito
Um
presente para as crianças do Patrice Lumumba, meu bairro
e dos
suburbanos bairros do meu país.
Eduardo
Quive
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GLOSSÁRIO:
Manhembana
– que é de Inhambane
Mabandido
– Bandidos
Changana
– povo/língua da província de Gaza (com forte influência na província de
Maputo)
Bitonga
– povo/língua da província de Inhambane
Lobolou
– quem casou tradicionalmente
Djône
– Expressão em XiRonga para referir a África do Sul
Madjonidjonis
– moçambicano que trabalha na África do Sul (muito frequente na região sul de
Moçambique)
Xicadjuana
– proveniente da expressão em XiChagana “Cadju” que se refere ao Caju.
Xicadjuana que é um Caju pequeno.
Xicaroce
– proveniente da expressão “Ncaroce” que se refere à Castanha de Caju.
Masseves
– pais dos noivos.
Nkulunguanas
– Algazarra. Gritos e ritmos feitos para manifestar alegria.
Ululus
– som saído dos Nkulunguanas
A
mutchato i lembe wanê – canção popular frequentemente cantada nos casamentos no
sul de Moçambique.
Kissananane
– expressão em XiRonga originária do inglês “Kiss” para referir a um beijo.
Kissananane – beijem-se.