20.6.12

Éramos Crianças

 
 Éramos crianças
Apadrinhados pela fome,
Isolados do banquete.
De camisetas de umbigo fora
Jeans rasgados
Mas não era moda,
Era a desgraça debuxada
Em nosso seminu corpo.
Pálidos, desnutridos
Enterrados no areal
Na roda de matacuzana
Em equipas para jogar xingufo
Sorridentes brincávamos.
Éramos crianças
Francisco Júnior
E éramos crianças, nas pétalas do jardim da vida, açoitados de espectro do futuro em plena mocidade, fecundos na incerteza dos dias, despreocupados com a duração dos tempos, apaziguados de doces canções melódicas do mbalele mbalele, o tana u talhomela nkata, o banana e outras escondidas escondíamos no tempo as memórias do hoje adulto que vivemos, na cabra-cega da vida em que só o dilúvio reina.
E éramos crianças, eu e Marcinha, antes do abandono dos inhas, de mãos dadas para o horizonte, de mãos dadas para o além, de mãos dadas no ntumbeleluana atrás da casa de caniço do mulato, escondidos da vergonha do mundo, apossados pela paixão da idade, no coito da paixão miúda. Quem diria que hoje essa menina seria Márcia!
E as lindas noites de lua cheia, errantes pelas horas que não as víamos passar, crianças que éramos empoeirados depois do banho forçado às 17 horas, agrupados na rua em pleno 10 da noite e por vezes, duas da manhã nas noites de Dezembro.
E éramos crianças, meninos pobres do pacato Patrice que o vimos a ser apossado de gente e de epidemias, sarna, diarreias, matequenhas, gravidezes e loucuras. Ah! Nostalgia sinto quando nesses tempos navego, quando desses momentos me lembro. O Henrique, filho do velho Fúndjua, o rebelde e reguila que torturava e atormentava a todos com sua porrada, feiura e agiotagem já aos 15/17 anos; das dívidas que cobrava à gente mais nova sem que o devessem; da tareia que deu ao Netinho, este por sua vez, queixava à sua mãe, tia Lalate, que saía à rua com fúria de cão, o Dox da minha casa, morto por vayives da zona, e lutava com o Henrique diante dos aplausos de toda a rua, crianças e adultos arruaceiros, ao estilo do nosso suburbano modo de viver no Patrice.
E era um caminho, esse que o Henrique escolhia, das pedradas que deu ao Lopes quando o xingondo se recusava de pagar o habitual imposto de circulação pela rua. Um dia, tirou com uma garrafa partida, olho da sua cunhada e afugentou-se para África do Sul, onde se encontra até hoje, supostamente com seu irmão Mathumana, outro conhecido cobrador de tributos.
Ah! Lembro-me do dia que ele nos encontrou nos derradeiros momentos do madjokodjoko entre eu e a Helena, sua irmã que, cansada de reprovada mais de 3 vezes na sétima classe, optou também pelo jone, voltou depois de um tempo e engravidou do primo com a idade ainda por explorar.
Lembro-me do Pala que no madjokodjoko na barraca de chapas de zinco soldado por seu pai, tio Zefanias, já falecido, em que estavam também, o Simone e Netinho, negou de fazer com Helena, a vizinha, queria fazer com sua irmã, Nina, esta que hoje já conta filhos ainda na flor da idade. Nem se quer era problema fazer madjokodjoko com própria irmã, éramos crianças e só entre nós ficou o segredo, no entanto, reféns ao agiota Henrique, que por muito tempo nos chantageava.
Lembro-me também, por causa dessa sessão, da má fama que tive na altura por não ter feito a circuncisão. Aliás, lembro-me do quão, Simone, Pala e outras crianças sofreram na tesoura do vovó Banze, enfermeiro que vive na zona quem se responsabilizou por cortar os bichos do pessoal. Simone passou os dias de capulana e andando de pernas abertas saltitando de dor em cada tocadinha que dava no seu bicho. Todos nos ríamos. Não do sofrimento dele, mas da graça que tinha vê-lo naquele embaraço.
Mas éramos crianças, na hegemonia dos tempos, vendo tudo a acontecer com a nostalgia que tais factos mereciam na nossa inocência, quando pulávamos de casa em casa pedindo assistir, entre sins e nãos da minoria vizinhança que tinha condições. Quanto a mim, o televisor preto e branco da minha casa, tão pequenininho, mas cabendo a gente de quase toda rua, já tinha avariado.
Lembro-me das laranjas da casa da tia Artmisa, a casa que com muito carinho deixava-nos assistir as tão amadas por nós, novelas brasileiras, furtávamo-las enquanto saíamos. E éramos apenas crianças!
Lembro-me de quando jogávamos a bola defronte a casa do tio Pedro, pai do meu sobrinho mais velho Luís, do Francisco, Rosinha, Amélia, Florêncio, Guilherme, Ngelina, Ngeli, Ngeu, Pedó, Miloca e Mevasse, a chará da tia Vitória esposa do tio Manhiça, o polícia. Mateu 7, a vovó Rosalina pegava na bola improvisada de trapos, quando entrava no quintal da casa, para depois incendiá-la e em jeito de proclamar a sua vitória, chamava-nos e reunia-nos em volta daquela fogueira e repetia o seu sermão que lhe fez merecer o evangélico nome de Mateu 7 “é proibido jogar em frente da casa”. E mesmo doutro lado do seu quintal reside o tio Luís, o que bebia e insultava por toda a rua e algures. Este também nos impedia de jogar ali, embora estivéssemos connosco os seus filhos, Paíto, Genito, Lulu e Djossefa, filhos das suas esposas, a tia Palmira e Laurinda, está última já nos cuidados divinos.
Foram tempos. Tempos que éramos crianças e “desentendidamente” construímos o nosso hoje.

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