19.9.12

Língua de Cão


Já não é carro cobrador de impostos
Nós descolonizámo-lo.
Já não é terror quando entra na povoação
Já não é Land-Rover do induna e do sipaio.
É velho e conhece todas as picadas que pisa.
É experiente este carro britânico
Seguro aliado do chicote explorador.
Mas nós descolonizámo-lo.
No matope e no areal
Sua tracção às quatro rodas
Garante chegada às machambas mais distantes
Às cooperativas dos camponeses.
Entra na aldeia e no centro piloto
Ruge militante nas mãos seguras do condutor
Obedece fiel a todas as manobras
Mesmo incompleto por falta de peças.
- Descolonizámos o Land-Rover (…)

Descolonizamos o Land-Rover, Albino Magaia, poeta moçambicano.


E começo assim este meu pacato discurso, como um verdadeiro assimilado e não falante da língua dos ma-Changana, ma-Ronga e outras etnias que faz de nós não mulungos, esta cor branca que nos torna(rá) gente nesta terra.
Começo assim este devaneio que me faz lembrar de uma pergunta que me é frequente: qual é a minha língua materna?

I
A quem disse-me que língua materna é aquela que nascemos e nos é ensinada logo a primeira, por outras palavras, é a primeira língua que falamos.

II
A quem disse-me que língua materna é aquela que me foi ensinada por minha mãe. Aquela que quando ela, a minha mãe, quando queria que me dirigisse a ela, a usasse.

III
A minha mãe é ma-Changana, por outras palavras, a minha mãe, nasceu em Chicumbane, distrito de Xai-xai, província de Gaza, sul de Moçambique.

IV
Nunca se quis saber, mas vou dizer, o meu pai é também ma-Changana, em outras palavras, o meu pai, nasceu em Novungueni, local onde graças aos heróis tombados, e como marca da descolonização (o que tem a ver Novungueni com o colono?) ganhou o nome de 3 de Fevereiro (dia dos heróis moçambicanos).

V
E eu? Eu nasci na Matola, província de Maputo e cá vivo. Se sou de Maputo? Bem, no meu bilhete de identidade vem “natural de Maputo”. Mas voltemos à questão: qual é a minha língua materna?

VI
Na verdade a primeira palavra que disse (ou que gostaria de ter dito) quando comecei a falar, foi “mamã”! E mamã que língua é?

VII
Volvidos bons exercícios do “mamã” fui dizendo outras coisas, como “quer água”, “quero comida”, “quer dormir com papá e mamã” e tantas outras palavras em língua portuguesa como minha mãe ensinava assim como os meus irmãos mais velhos e meu pai.

VIII
Saí a rua (a minha rua chamava-se rua “O”, agora, é Av. Mártires da Machava, outros heróis moçambicanos que tomaram lugar), brinquei com Netinho, Simone, Nina, Helena, Djossefa, Lulu, Florêncio entre outros. Todos eles, expressavam no moderno xi-Ronga misturado com xi-Changana, afinal, Maputo é terra dos ma-Rongas!

IX
O que sei é que a segunda língua, aquela a que os meus amgiso falavam, os meus irmãos disseram-me que era Dialecto. E quando a minha mãe me ouvia a falar, deva-me uma tareia dizendo “não fala a língua de cão”. Aliás, quando descobriram que eu ia falando alguma coisa daquilo, proibiram-me de sair de casa.

X
Quando comecei a estudar História (5ª classe) no capítulo que falava da dominação colonial portuguesa em Moçambique, vi que uma das formas dessa colonização era fazer com que os moçambicanos abandonassem a sua cultura, a tal “cultura de selvagens” e por conta disso, as línguas (como muitos outros hábitos culturais) foram proibidos e até definidas como a principal barreira para a nossa civilização. Por tanto, o xi-Changana e outras línguas nativas passaram a ser conhecidas como línguas de cães e, como tal, não podia o Homem, tido como único animal racional, falar.

XI
A minha mãe tal como outras mães que sabem “o que custou a liberdade” teceram que só conhecendo o Português é que se podia ser gente na sociedade. Realmente isso é um facto, descolonizado que foi o Português, já no Pós-colonial que vivia-se (ou vive-se) em que ele foi revogado como língua oficial, era de capital importância massificá-lo e fazer com que todo moçambicano o falasse.

XII
Voltando a questão: qual é a minha língua materna? Bem, volvidos anos de lá até cá, aprendi que embora tenha falado a primeira o Português, ele já mais será a minha língua materna. A minha língua materna é o xi-Changana, essa língua de cão que os meus ancestrais, os vovô Txutxululu, Gutleia, Bovane, Muntimuni, Injuasse, Nlhevo e Nambita, este último meu chará de tradição, falaram. E aquela que desde ao ventre da minha mãe, me foi ensinada e hoje, falo com orgulho de poder partilhar o que sou com outros povos, ciente de onde venho.

XIII
Hoje, aliás, mesmo o Governo está ciente da importância das línguas nacionais ou línguas nativas, tanto que já está em implementação o ensino bilingue em todas escolas primárias.

XIV
Em jeitinho de conclusão, posso (ou podemos) dizer que só agora, com essa consciência, em mim (como pode ser em qualquer cidadão moçambicano), é que ultrapassamos o período pós-colonial em Moçambique. Período em que faltava que nós, nos descolonizasse-mos de nós mesmos. 

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TEXTO DA MINHA ESTREIA NA REVISTA ELLENISMOS COM A COLUNA XITIKU NI MBAULA, DANDO AO MUNDO O SAL DO MEU SOLO PÁTRIO.

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